![]() Nas últimas semanas, os mercados globais têm enfrentado grande volatilidade, especialmente depois do anúncio de Donald Trump, em 2 de abril deste ano, sobre tarifas comerciais recíprocas a mais de 180 países. O presidente norte-americano justificou a medida como necessária para corrigir décadas de acordos comerciais que, segundo ele, prejudicaram a indústria e os trabalhadores dos Estados Unidos. Após o conhecido “Dia da Liberdade”, as bolsas americanas caíram, as taxas dos títulos soberanos dos Estados Unidos subiram e o dólar perdeu valor. Parte dessa movimentação, segundo os analistas da XP Investimentos, pode ser temporária, aguardando definições sobre as tarifas que vão vigorar, principalmente nas relações entre China e Estados Unidos. Mas o que vem ganhando atenção é o debate sobre o fim do “privilégio exorbitante” dos EUA. Os estrategistas da XP lembram que o privilégio começou em 1944, com o Acordo de Bretton Woods, que transformou o dólar na principal moeda de reserva internacional. Na época, as moedas estavam atreladas ao dólar, que tinha conversibilidade fixa com o ouro. Desde então, os EUA assumiram papel central no sistema financeiro mundial, conseguindo se financiar com condições mais vantajosas que outros países, devido à demanda constante pelo dólar e juros relativamente mais baixos. Em 1971, o presidente Richard Nixon rompeu o vínculo do dólar com o ouro, transformando a moeda em fiduciária, baseada na confiança internacional no país emissor, sem lastro físico. Mesmo assim, o dólar manteve sua posição dominante como moeda global, possibilitando aos EUA manter déficits comerciais e fiscais elevados, quase sem limitações. A aceitação mundial do dólar, como explica Artur Wichmann, CIO da XP, está ligada à confiança nas instituições americanas, no sistema jurídico e na solidez financeira dos Estados Unidos. Esse conjunto criou um ambiente em que o capital global via o país como porto seguro. A profundidade dos mercados, a liquidez dos títulos do Tesouro e a capacidade das empresas americanas liderarem em inovação tecnológica reforçaram esse papel. Onde está o problema?Porém, conforme a equipe de analistas da corretora, esse privilégio enfrenta hoje uma série de dificuldades. A dívida pública dos EUA ultrapassa US$ 36 trilhões, equivalente a 122% do Produto Interno Bruto (PIB). Déficits fiscais que superam US$ 1 trilhão por ano persistem há décadas, chegando a 6,3% do PIB em 2024. A taxa de poupança doméstica permanece baixa e os déficits em conta corrente mostram dependência externa para financiar o consumo. “De maneira relevante, não há perspectivas de melhora efetiva nos próximos anos. A estrutura que se estabeleceu de gastos públicos elevados deve seguir presente, especialmente em defesa e áreas sociais, ao mesmo tempo em que o custo de endividamento deve manter-se em trajetória ascendente”, afirmam os analistas. Segundo a XP, a polarização política tem dificultado acordos para controlar gastos públicos e impostos, o que compromete o equilíbrio fiscal. Tanto republicanos quanto democratas, diz a corretora, não têm avançado em reformas que equilibrem as contas. A desglobalização, acelerada pela pandemia, tensões geopolíticas e políticas econômicas recentes, como as tarifas anunciadas por Trump, vem levando países a buscarem mais autonomia em suas cadeias produtivas e reduzir a dependência do dólar. A China, por exemplo, incentiva o uso do yuan em transações comerciais com parceiros estratégicos e tem aumentado o peso de moedas alternativas e do ouro nas reservas internacionais. Essa mudança sugere um sistema monetário mais multipolar, com o domínio americano sendo questionado. Na visão do time de estrategistas da corretora, o mundo está buscando diversificação para ativos considerados seguros, como ouro, franco suíço, iene e até bitcoin, que oferece um modelo de moeda com lastro finito. Pontos de inflexãoA reeleição de Donald Trump e a imposição das tarifas foram pontos de inflexão. Diferente de crises anteriores, o dólar perdeu força enquanto os títulos do Tesouro passaram a oferecer juros mais altos. Ainda que Trump tenha recuado em parte das tarifas e aberto negociações, o dólar não recuperou totalmente seu valor. No curto prazo, o mercado espera clareza nas negociações comerciais, mas as dúvidas sobre a sustentabilidade do financiamento dos déficits americanos permanecem. Um dos riscos é a menor demanda pelos leilões do Tesouro, o que poderia forçar o Federal Reserve a comprar os títulos para sustentar o mercado. Isso aumentaria os riscos de inflação e questionaria o papel do banco central americano. Os analistas alertam que, sem mudanças fiscais, os investidores poderão exigir juros maiores para manter investimentos em dólares, elevando os custos para os EUA. Por outro lado, o ambiente corporativo americano mantém-se vibrante. O país segue na liderança mundial em inovação tecnológica, inteligência artificial, biotecnologia e energias renováveis. A estrutura de mercado ainda favorece o empreendedorismo e a mobilização de capital. Portanto, a perda da posição dominante não dependerá apenas da situação fiscal ou cambial, mas da capacidade do país de continuar inovando e se adaptando. Um sistema tarifário desajustado, por exemplo, de acordo com os analistas, pode reduzir investimentos e afetar a produtividade, justamente em uma época que exige flexibilidade e cooperação global. Na avaliação da XP Investimentos, os EUA ainda contam com um “cartão de crédito dourado”, que não foi cancelado, embora os sinais de desgaste tenham se tornado evidentes. “No entanto, esse privilégio não é incondicional. Nos últimos anos, começaram a surgir sinais de que essa confiança pode não ser eterna. De forma gradual, mas visível, o cristal começou a trincar”, escrevem. |
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