![]() Na porta de um atacadista, Ana Laura Perini e sua filha Micaela cuidam de um pacote com 40 rolos de papel higiênico, um carrinho de feira e três ecobags cheias de produtos, enquanto esperam um motorista de aplicativo. É a segunda vez que a cena se repete em poucas semanas. Agora, elas contam com estoque de compras para três ou quatro meses – e pelo menos quanto aos produtos básicos, conseguirão se proteger da disparada de preços que os argentinos esperam após as eleições presidenciais de domingo (19). Nas sacolas, há produtos de limpeza e de higiene pessoal, leite, bolachas e salgadinhos. “Teria comprado também papel toalha, mas estava em falta”, conta Ana Laura. Ela começou a frequentar o atacadista há um ano, diante da alta dos preços – a inflação argentina é de quase 143% em 12 meses. “Estou sempre fazendo contas e conheço bem a realidade, é a maneira de me proteger”, diz. Muitos argentinos adquiriram o hábito de comprar mais do que precisam para a semana ou o mês, em uma tentativa de serem mais rápidos do que o avanço dos preços. Para Guillermo Oliveto, especialista em consumo, humor social e marcas, a ideia de “economizar consumindo” responde ao cenário de incerteza em que o país está imerso, além da brusca perda de poder aquisitivo.
No dia seguinte às eleições primárias de agosto, quando o ultradireitista Javier Milei teve mais votos do que políticos tradicionais do país, o governo desvalorizou o peso em 22%, o dólar disparou no mercado paralelo, os preços foram remarcados e o abastecimento de certos produtos foi interrompido por alguns dias. Como resultado, a inflação passou de 12% em agosto e setembro. A população, acostumada a impactos bruscos na economia após resultados eleitorais surpreendentes, correu para lojas e supermercados para se resguardar para o primeiro turno, realizado em 22 de outubro. Agora, compra o que consegue pensando no segundo. Para conter a disparada do dólar no mercado paralelo, o câmbio oficial ficou congelado desde agosto. Além disso, antes e depois do primeiro turno, o governo levou a cabo fiscalizações em casas de câmbio ilegais para evitar especulações durante o processo eleitoral. Agora, a estratégia para minimizar o impacto na cotação do peso após o pleito de domingo, começaram a ser realizadas “micro-desvalorizações” diárias, iniciadas nesta quarta (15), até chegar a uma desvalorização de 3% por mês. Ansiedade no ar e efeito “act now”A ansiedade, no entanto, paira no ar. “Diante da sensação de que alguma coisa grave vá acontecer, a população enche o freezer e a despensa. Uns compram óleo de cozinha, outros carne, vinho, massa, arroz. Quem consegue compra televisores ou passagens aéreas”, diz Oliveto. “Como é muito difícil economizar, é melhor gastar agora. Por isso, as compras em ‘modo bunker’”. Com a queda do poder aquisitivo da população e a dificuldade de ter acesso a propriedades, automóveis ou realizar viagens ao exterior, o argentino consome o que consegue. Em 2017, o salário médio no país era de US$ 1.800; hoje, ronda US$ 400, considerando a cotação do mercado paralelo. Devido ao efeito “act now”, o consumo não caiu, avalia Santiago Manoukian, chefe de research da consultoria Ecolatina. Apesar da perda de poder de compra e do crescimento da pobreza, que chegou a 40% no primeiro semestre, as políticas públicas de distribuição de renda – incrementadas pelo ministro da Economia e candidato Sergio Massa após as primárias – e a urgência de se livrar rapidamente dos pesos, antes que percam valor, ajudaram a manter a atividade econômica. Masterclass com Su Choung Wei Lucrando com o Medo Estratégia é capaz de gerar de 2% a 6% de rentabilidade mensal em dólar com uma operação por mês Já do ponto de vista da oferta, segundo Manoukian, o ritmo permaneceu porque o governo “forçou” empresas importadoras a recorrer a créditos comerciais, que aumentaram em US$ 13 bilhões em 2023. Para o especialista, é um problema.
Devido à falta de dólares no Banco Central, o governo argentino apertou o cerco contra as importações. De janeiro a setembro, as importações argentinas caíram 10,1% em relação ao ano anterior. Segundo Manoukian, o governo argentino também pagou parte das importações e da dívida privada com empréstimos da ordem de US$ 11,5 bilhões da China. O contexto é ruim, mas a previsão da Ecolatina é de que a atividade econômica caia somente 1,5% neste ano. Estoques de bem-estar e prazerA sensação de que os “pesos queimam” nas mãos também leva o argentino a formar “estoques de bem-estar e prazer”. Segundo Oliveto, em um contexto de impacto psicológico gerado pela longa quarentena no país durante a pandemia, somado à incerteza econômica, o consumo atua como um “ansiolítico”. Não à toa, shows internacionais recentes no país tiveram todos os ingressos vendidos (como os três de Taylor Swift nos últimos dias e os dez do Coldplay no ano passado), estádios de futebol estão sempre cheios, há recordes de presença em teatros e o turismo interno se intensifica. “Primeiro as pessoas estocam bens, alimentos. Depois saem sábado à noite, vão ao bar, comem uma pizza com amigos para esquecer a realidade. É a construção de bolhas de bem estar, e é transversal entre as classes sociais. Alguns comem em restaurante de luxo, outros fazem piquenique ao lado da estrada”, pontua.
Facundo Kelemen é dono do Mengano, um reconhecido restaurante de Palermo, em Buenos Aires, com capacidade para 40 comensais – que lota em plena terça-feira. Como os fornecedores reajustam os preços, ele costuma fazer correções mensais nos pratos. Por isso, o cardápio físico já não apresenta valores (só o digital). Apesar do contexto econômico, a prosperidade do local já faz com que ele planeje a abertura de um bar. “Estamos indo bem e temos que aproveitar. É preciso continuar”, diz. Para iniciar o novo empreendimento, porém, ele precisa esperar a incerteza sobre o que acontecerá com os preços a partir da semana que vem passar. “Há várias semanas pedimos orçamentos para construtoras e não enviam. Ninguém quer se arriscar”. |
Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados *