 Adriana Smith sentia fortes dores de cabeça quando decidiu procurar um hospital na Geórgia, nos Estados Unidos, há três meses. Grávida de nove semanas, ela foi medicada e, sem ser submetida a nenhum exame, teve alta. Na manhã seguinte, foi encaminhada à emergência com a respiração ofegante. Dessa vez, o diagnóstico veio: coágulos sanguíneos no cérebro. Aos 30 anos, Smith teve a morte cerebral decretada pouco após sua internação, mas, mesmo sem autorização da família, seu corpo foi mantido em suporte de vida para permitir o desenvolvimento do feto. O caso chamou a atenção em todo o país e reacendeu o debate sobre os limites éticos e legais das políticas antiaborto promovidas por governos estaduais comandados por republicanos, em meio ao corte de gastos e medidas controvérsias da administração de Donald Trump contra organizações voltadas para a saúde feminina. Familiares de Smith, incluindo seu filho de 5 anos, ainda a visitam no hospital. Segundo eles, os médicos informaram que não estão autorizados a desligar os dispositivos que a mantém respirando porque a lei estadual proíbe o aborto após a detecção da atividade cardíaca do feto, o que geralmente ocorre por volta da sexta semana de gravidez. A lei foi aprovada em 2019, mas só passou a ser aplicada em 2022, depois da revogação do histórico caso Roe v. Wade, que garantia o direito federal ao aborto nos Estados Unidos. Os legisladores, no entanto, não parecem ter considerado uma situação em que uma mulher grávida esteja legalmente morta, escreveu a especialista em direito reprodutivo Kimberly Mutcherson para o New York Times. “[É] uma espécie de experimento: permitir que um feto se desenvolva no corpo de uma mulher com morte cerebral. Sabendo do enorme esforço que o corpo de uma gestante precisa fazer para sustentar e nutrir uma gravidez, não é possível saber com certeza os danos que um feto pode sofrer ao permanecer preso em um corpo sem um cérebro funcional”, acrescentou. A preocupação também é citada pela mãe de Smith, Newkirk. Ela disse ter sido informada de que o feto de sua filha apresenta acúmulo de líquido no cérebro, o que faz com que seu neto possa nascer “cego, sem conseguir andar” ou mesmo sem forças para sobreviver. “Até onde se sabe, é a família [de Smith] quem está pagando por isso, porque nós não temos nenhum sistema que diga que o hospital deve cobrir os custos de manter o corpo dela funcionando”, disse ao GLOBO a democrata Jasmine Clark, deputada estadual da Geórgia. “Isso me preocupa muito porque reforça a ideia de que o governo não vê as mulheres como seres humanos de verdade, especialmente as mulheres grávidas. Parece que, a partir do momento em que você engravida, perde o direito de ser humano e passa a ser apenas uma incubadora. Acho uma forma horrível de enxergar mais da metade da população”. O assunto é especialmente importante porque os EUA apresentam a maior taxa de mortalidade materna entre todos os países ricos. Os dados mais recentes, de 2023, mostram que o país teve 18,6 mortes para cada 100 mil nascimentos. O número representa uma queda em relação a 2022, quando 22,3 mulheres morreram a cada 100 mil partos, mas o detalhamento dos dados revela uma realidade preocupante: embora os óbitos tenham diminuído, as mortes de mulheres negras aumentaram, saindo de 49,5 em 2022 para 50,3 por 100 mil nascidos em 2023. O grupo foi o único que apresentou um aumento de ocorrências no país, com mais que o triplo do que taxas para mulheres brancas (14,5), hispânicas (12,4) e asiáticas (10,7). A maior parte dessas mortes (80%) é evitável, segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC). Especialistas atribuem a taxa excepcional ao fato de que o país não oferece saúde pública universal, nem licença maternidade remunerada, ao contrário de todos os seus pares. Na Noruega, por exemplo — onde nenhuma morte materna foi registrada em 2022 —, são oferecidas 86 semanas de afastamento. “Nos Estados Unidos, tudo é baseado em seguros de saúde, geralmente vinculados ao emprego. É muito caro conseguir um seguro se você está desempregado”, disse Clark. “Quando uma pessoa engravida, o governo fornece um seguro temporário. Mas isso significa que há muitas mulheres que só começam a ir regularmente ao médico nesse período. Em muitos casos, elas já estavam com a saúde debilitada e não sabiam”. Novas estratégiasClark fez parte de uma delegação de parlamentares americanas que veio ao Brasil no último mês em viagem promovida pela Women’s Equality Center e o State Innovation Exchange. O grupo buscou entender as consequências sociais e de longo prazo da criminalização do aborto, traçando paralelos entre os dois países. A agenda ocorreu enquanto a oposição estadual democrata busca se reorganizar para responder aos efeitos do novo governo Trump e preservar os direitos reprodutivos — ao mesmo tempo em que veem a preeminência do tema praticamente desaparecer do cenário político dos EUA. Diante dos cortes de gastos que desmantelam agências federais, as demissões em massa, os anúncios de tarifas e as políticas de cerco às universidades e aos imigrantes, os democratas hoje têm direcionado seu foco político para outras questões. Embora a maior parte da oposição ainda veja o direito ao aborto como um pilar do partido, ela também considera essencial expandir o discurso para além da pauta, acreditando que o novo governo republicano abriu espaço para outras prioridades. Trump, que no passado já se gabou por seu papel na derrubada do caso Roe v. Wade — ele indicou três juízes que garantiram a decisão —, mal mencionou o tema desde que assumiu seu segundo mandato. “No Tennessee, por exemplo, temos uma das proibições mais rígidas ao aborto. Sem exceção para estupro, incesto ou para meninas pequenas. É também um dos estados com maior taxa de mortalidade infantil (6,6 a cada 100 mil) e materna (41,1, a maior do país). Ao mesmo tempo, os republicanos têm controle absoluto”, disse a senadora London Lamar ao GLOBO. “Então, ao invés de lutar uma batalha perdida, mudei minha estratégia para levantar a bandeira da saúde materna”. Investimentos sob ameaçaMesmo nesse cenário, em abril o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, na sigla em inglês) anunciou que encerraria o financiamento da histórica Iniciativa de Saúde da Mulher (WHI) a partir de setembro. A decisão, que posteriormente foi revertida após a má repercussão, colocava em risco o futuro de um dos maiores estudos sobre saúde feminina no mundo. A iniciativa acompanha a saúde de milhares de mulheres para entender como reduzir os riscos de câncer, doenças cardiovasculares e outras condições pós-menopausa. Todo o financiamento do projeto soma apenas cerca de US$ 10 milhões por ano — menos da metade do que os contribuintes americanos supostamente gastaram com as viagens de golfe de Trump nos três primeiros meses de seu mandato, segundo a NBC. Dias depois do anúncio do corte, o secretário do HHS, Robert Kennedy Jr., voltou atrás e disse reconhecer que a iniciativa é “essencial para a saúde das mulheres”. Ainda assim, os efeitos do novo governo serão sentidos por milhares de pessoas no mundo. O movimento de corte de gastos da administração que levou ao cancelamento de mais de 80% dos programas de ajuda externa da Usaid, a principal agência de ajuda do país, deverá impedir que quase 50 milhões de mulheres tenham acesso a métodos contraceptivos —o que, por sua vez, poderá contribuir para o aumento da mortalidade materna global. Ao anunciar a medida, em março, o governo afirmou que os contratos anulados “gastaram dezenas de dólares de maneiras que não serviam” aos interesses dos EUA, embora o valor destinado à agência fosse menos de 1% do orçamento federal anual. “Há décadas, os Estados Unidos implementaram, como resultado do movimento pelos direitos civis e das lutas e protestos contínuos, ações afirmativas, esforços de diversidade, equidade e inclusão, para garantir algum nível de oportunidade e justiça”, disse Lamar. “Agora não é mais assim. É como se estivéssemos voltando no tempo”.
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