![]() O Brasil sofre de uma doença dupla que se retroalimenta: tem obesidade fiscal conjugada com anemia de produtividade. E até aqui, não tem feito tanto quanto seria necessário para se livrar dela – pelo contrário. “O governo, às vezes, dá sinais de que, apesar dos esforços pelo lado do Ministério da Fazenda, está buscando jeitinhos de impulsionar fiscalmente a economia. E como a gente se aproxima justamente de um período de eleição, em geral, a tentação de utilizar a política fiscal como instrumento de expansão é muito grande”. A avaliação é do economista Otaviano Canuto, que foi vice-presidente no Banco Mundial e diretor executivo no FMI, e hoje é pesquisador Policy Center for the New South e do Brookings Institution. Canuto foi o segundo convidado do InfoMoney Entrevista, novo programa do InfoMoney que traz ao debate semanalmente figuras renomadas da economia, dos negócios, da política, da academia e até da cena pop. Para Canuto, a proposta de isentar de Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil mensais é um exemplo de “presentinho fiscal” exagerado dentro de uma série de políticas de estímulo à economia baseada no aumento do gasto público. A eficiência de medidas do tipo, no entanto, é questionável. Sua visão é de que o país gasta muito e gasta mal com subsídios tributários, aposentadorias e salários no setor público. Nessa toada, não há como não esperar novas elevações da taxa básica de juros – que já está no patamar mais alto desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. “Se queremos que o BC não precise manter juros em patamares tão altos, temos que ter certeza de que os outros componentes da demanda agregada estejam em consonância com a ampliação da nossa capacidade”, diz. Leia os principais trechos da entrevista abaixo: InfoMoney – O Brasil tem a taxa de juros mais alta desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016. E talvez tenhamos a maior Selic em quase 20 anos na próxima reunião do Copom. Quais devem ser os caminhos da política monetária no Brasil no curto e no médio prazo? Otaviano Canuto – A taxa de juros do Brasil, particularmente em termos reais, é extremamente elevada. E há motivos para tanto. Os juros têm de ir para as alturas como maneira de ajudar a controlar a demanda agregada e evitar que ela se choque com a capacidade instalada no Brasil, aumentando ainda mais a inflação. Desde o ano passado, a tendência básica é de alta da inflação. Então, a despeito de já estarem em patamar elevado, o Banco Central se viu obrigado a elevar os juros um pouco mais. Esse patamar não depende apenas do desejo do BC, depende também do restante que influencia a demanda agregada.
Como o impulso fiscal e financeiro público está bem acentuado, inevitavelmente, a carga de responsabilidade sobre o Banco Central e as taxas de juros acaba sendo muito maior. A rigor, se queremos que o BC não precise manter juros em patamares tão altos, temos que ter certeza de que os outros componentes da demanda agregada estejam em consonância com a ampliação da nossa capacidade. IM – Dito isso, na sua visão, devemos ter novas elevações de juros à frente? Canuto – Devemos ter um aumento adicional. Há dúvida apenas – e a orientação pelo Banco Central deixa essa dúvida – se o incremento será de metade de 100 pontos-base [patamar de elevação adotado nas últimas três reuniões do Copom] ou se será dividido em duas vezes. Na margem, o aumento não será tão intenso quanto foi nas reuniões mais recentes, mas ainda ocorrerá. A gente sabe que o impulso fiscal colocado na praça desde o primeiro ano do governo Lula 3 já não será mais o mesmo. Inclusive, a economia tende a desacelerar – portanto, os juros não precisarão subir com a mesma intensidade na segunda metade do ano.
É que o país usou para caramba o espaço fiscal que tinha já nos primeiros anos. O que se espera é que não queira recorrer às mágicas fiscais agora no segundo mandato. De qualquer maneira, quem quer que herde o governo terá que se defrontar com a exaustão do espaço fiscal. ![]() IM – O senhor costuma dizer que o Brasil sofre de uma doença dupla: anemia de produtividade com obesidade fiscal, uma combinação que está no cerne dos nossos juros muito altos. Enxerga sinais de que esse ciclo possa ser quebrado? Canuto – Não com a intensidade que eu diria desejável. O volume de gastos públicos no Brasil é grande e, intrinsecamente, isso não quer dizer em si um problema – desde que a composição desse gasto seja favorável ao crescimento econômico, inclusive ao crescimento da produtividade. O problema é que não é. Mesmo descontando políticas sociais eficazes, como o Bolsa Família, a maior parte do gasto público brasileiro não contribui para o crescimento. Entre 1992 e 2014, os gastos públicos subiram, em média, 6% ao ano acima da inflação, passando de 22% para 34% do PIB. No entanto, os gastos em infraestrutura ficaram lá embaixo, abaixo do mínimo necessário para manter a infraestrutura física do país. Gastamos muito e mal. É necessário revisar a qualidade disso para encontrar espaço para gastos produtivos. Estudos do Banco Mundial apontam áreas de gasto excessivo e pouco produtivo, como a previdência supergenerosa, que levou 14 anos para ser reformada – gastamos tanto quanto o Japão e os países escandinavos mesmo tendo metade do que eles têm de população acima de 65 anos. O mesmo sobre os altos salários do setor público em certas áreas. Além disso, o Brasil concede uma grande quantidade de isenções e subsídios tributários. Na época em que eu estava no Banco Mundial, esse montante era estimado em 4,5% do PIB, podendo chegar a 6% hoje.
Isso tem a ver com a qualidade da educação, a falta de investimentos em infraestrutura e o ambiente de negócios. Até fizemos algumas poucas reformas nos últimos 20 anos, mas elas demoraram a ser implementadas – e paramos de fazer. A reforma da lei de falências foi um êxito, e a reforma tributária é uma ótima notícia, mas ainda há riscos de ser desmilinguida na regulamentação e sua implementação será gradual. Outras reformas essenciais para melhorar o ambiente de negócios não são priorizadas como deveriam. Ainda não estamos fazendo tanto quanto seria necessário para nos livrar dessa doença dupla que se retroalimenta. IM – Como o senhor avalia a recente proposta de isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, com a contrapartida de aumento de tributação para quem recebe acima de R$ 50 mil? Canuto – Gosto da segunda parte, pois, no futuro, será necessário um grau maior de taxação da renda dos mais ricos, tanto no Brasil quanto no mundo. Nosso sistema tributário é muito dependente da arrecadação com impostos indiretos, e isso aumenta o grau de desigualdade na economia. Tributos indiretos se aplicam principalmente sobre o consumo – e, evidentemente, quanto mais pobre você é, maior é a proporção da sua renda direcionada ao consumo.
Sonhando com com uma maior abrangência do imposto sobre a renda em relação ao imposto sobre produtos e serviços, a taxação de extratos superiores de renda é boa. Mas na primeira parte da medida [isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil] acho que tem um exagero. A parcela da população brasileira com renda de R$ 5 mil para baixo ela é enorme e, nesse sentido, essa isenção é mais um presentinho fiscal como parte daquele pacote de estímulo à demanda que mencionamos antes. Houve um exagero aí. IM – Desde o dia zero, o arcabouço fiscal proposto pelo governo Lula 3 despertou muito questionamento, especialmente do mercado. Essa reação chegou no nível do desespero no fim de 2024, com a divulgação de um pacote de corte de gastos prometido há muito tempo – e considerado muito tímido. Como o investidor estrangeiro enxerga as iniciativas de caráter fiscal no Brasil? O arcabouço, na prática, foi uma ótima notícia dado o temor de que, com o fim do teto de gastos, a gente entraria mais uma vez numa trajetória de explosão de dívida. O arcabouço chegou cheio de pressuposições e de cenários diferentes, dependendo de gatilhos e tudo mais – mas a existência de algum conjunto de regras já foi uma boa notícia em si mesma. Na prática, a execução enfrentou o desafio de ter que lidar com a velha propensão de ampliação de gastos. Sabiamente, espertamente, a ênfase pelo governo passou a ser o superávit primário. O diabo é que você olha o superávit, mas também olha o gasto. A ideia é não só parar, como reverter parcialmente o elevado patamar de dívida pública sobre PIB que nós temos hoje no Brasil.
Havia uma expectativa de o arcabouço ser reforçado por um programa de revisão de gastos, que controlasse a tendência de crescimento manifesta particularmente no primeiro ano do governo Lula. E o que foi oferecido pelo governo ficou muito aquém desse desejo. Não é segredo para ninguém que o ministro Fernando Haddad [Fazenda] e a ministra Simone Tebet [Planejamento] se defrontam com a resistência dentro do próprio governo. E há uma diferença do presidente Lula de agora, em relação ao que foi no primeiro governo, quando ele se alinhava mais, em termos de gestão fiscal, com o que a Fazenda propunha. Agora não parece ser tanto o caso. A visível percepção de que não haveria a esperada revisão de gastos caiu com uma decepção muito grande. E a gente assistiu a um ajuste das carteiras dos investidores, não apenas estrangeiros, mas brasileiros – que exageram. É o que o finado grande economista Rudiger Dornbusch chamou no seu tempo de overshooting. São ajustes que vão além: na hora em que está todo mundo vendendo papel brasileiro para comprar papel no exterior, a taxa de câmbio e os preços dos ativos superajustam. Depois do superajuste, naturalmente, parte do excesso é devolvido, o que a gente assistiu com o câmbio. Mas a motivação subjacente a esse ajuste continuou lá, e a reversão de câmbio não foi integral. IM – É aí que o investidor estrangeiro enxerga o problema? O Brasil é hoje um país em que a restrição externa deixou de ser uma preocupação, como foi historicamente no país e em boa parte da América Latina. Nós temos um fluxo de pagamentos com o exterior razoavelmente balanceado, um déficit em conta corrente que tem sido facilmente financiável pelo ingresso de investimento direto externo. Nós temos uma posição de reservas também muito confortável. Então, não é o lado de balanço de pagamentos que preocupa. O nosso ponto de fragilidade, do ponto de vista de investidores, é justamente o fiscal. É esse que atrai a atenção de todo mundo.
Ninguém tem expectativa de que aconteça agora no final do Lula 3, mas em algum momento tem que vir para justamente reverter a trajetória fiscal. É para isso que todo mundo olha. |
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